domingo, 1 de junho de 2008

para ler ao som de 'mariana foi pro mar'.

''é que por enquanto a metamorfose de mim em mim mesma não faz sentido. é uma metamorfose em que eu perco tudo o que tinha, e o que sou. e agora o que sou? sou: estar de pé diante de um susto. sou: o que vi. não entendo e tenho medo de entender, o material do mundo me assusta, com seus planetas e baratas”. [clarice lispector]
tinha a impressão que vivia num quartinho dos fundos, cheio de baratas.
é isso, ela vivia num canto de baratas.
no copo uma bebida qualquer, o amortecimento da alma.
no rosto, uma máscara qualquer, o aniquilamento do ser.
no corpo, a intranqüilidade constante.
e tinha essa mania exagerada de sugar pessoas. de querer extrair até a última gota de mentiras, vícios e imperfeições. mas nunca se satisfazia. queria sempre mais... até ver que as pessoas secavam. e secas iam embora. no chão forrado por cigarros e pensamentos gastos, ela reinventava um modo de ser, um que estivesse vazio de qualquer resquício de si mesma. para poder se encher de outros, de outras.
conversas inúteis, mas que revestiam-se de interessantes panos coloridos eram um bom começo para que ela pudesse seduzir e deitar os dentes num pescoço macio. era isso que sabia fazer. passava os dias e as noites, esvaziando-se e enchendo-se.
certa noite alguém lhe trouxe um espelho. ela que nunca havia visto um espelho e então não sabia o que era um espelho, ficou observando a pessoa que também a observava e que por algum motivo obscuro havia sido presa naquele quadrado estranho. sentiu a boca aguar com as possibilidades de encher-se.
como em um ritual profundamente sagrado, começou a sugar-lhe. sabia não ser necessário qualquer engodo, desperdício de tempo, não. a outra estava ali. oferecendo-se, implorando. no início sentiu um formigamento, uma comichão que principiava na ponta dos pés e aos poucos ia se espalhando pelo corpo. um terror tomou conta de si. quanto mais sugava, mais vazia ficava. e pôde ver toda a escuridão existente naquela pessoa à sua frente. um buraco negro infinitamente denso. não sabia agora, não mais, se sugava ou era sugada. uma batalha feroz. todas as mentiras, vícios e imperfeições que já tinha visto até então, em nada se comparava com o que levava aquela estranha. as baratas, com suas patas zunindo, juntaram-se ao seu redor e assistiam famintas à cena que se desenrolava. e nessa guerra, ela se percebeu pela primeira vez. e secou. assim como havia secado tantos outros, ela secou. era agora só um espectro humano. e já não havia como encher-se novamente. ela havia sugado até a última gota de si. sentiu as baratas aproximando-se, os olhos reluzindo, as antenas tranformando-se em garras. acendeu o último cigarro, sorveu o último gole daquela bebida qualquer e viu que ao seu lado jazia a máscara, partida ao meio. o corpo se tranqüilizou. e restaram somente as baratas. reinavam no quartinho dos fundos, o canto que era delas.

“ e no princípio de tudo ele disse: perante as baratas, não reinarás.”

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