a casa estava arrumada. do jeito que ele gostava. havia passado a tarde dedicando-se a tirar o pó impregnado dos móveis, limpando os porta-retratos, esfregando o chão de suas imundícies até sentir que as mãos estavam trêmulas e não obedeciam mais. tomou cuidado para que cada canto, cada entrada e cada saída ficasse impecável. a casa não era grande, mas depois de todo lixo expulso, parecia maior. e agora, quase imaculada não fosse a presença dela, a casa era só solidão. porque até a sua presença estava cheia de solidão. e ela esperava torcendo as mãos, observando as luzes da rua, a chegada dele. sabia que seria intempestiva, por isso arrumava a casa, uma, duas, três vezes, para que ele pudesse despejar sua bagunça. era assim sempre. a casa pronta, as três batidas, ela saltava do sofá e abria a porta. tudo se modificava. a casa branca enchia-se novamente. as cores trazidas por ele riscavam o chão, a mesa, a janela, o quadro, o teto, a cama, o tapete persa, os lençóis. quase cegando-a. já na porta, os pedaços de seu desarrumado começavam a ficar pelo chão. ela apenas dava passagem para ele pudesse entrar e observava a poeira deitando novamente sobre os móveis. era como um vento.
as folhas de papel cuidadosamente empilhadas na escrivaninha saltavam e eram levadas para fora da janela. um a um os porta-retratos estilhaçavam-se no chão. não era mais só uma casa, era um emaranhado de palavras, sons, luzes e visões desconexas. e ele agigantava-se vertiginosamente aos olhos dela.
ouvia o som dos vidros serem quebrados longinquamente, de lençóis sendo rasgados e sentia o cheiro da lama misturado ao cheiro das rosas esmigalhadas. havia uma brusquidão nos gestos, que a cada movimento acertavam-lhe um soco no estômago, mesmo sem tocá-la. ele nunca a tocava. ao mesmo tempo, havia uma certa suavidade na voz, como que parecida com uma carícia sutil. os olhos dele sugavam-na, chamando a misturar-se a ele, a compartilhar da desordem das coisas. aquela desordem que parecia imiscuir-se nele. por um segundo, apenas e somente por um segundo, que ficava suspenso no ar, ela deixava-se mergulhar, e neste segundo podia ver caleidoscópios rodopiando no ar, portas que se abriam estrondosamente, vozes misturadas, e mãos de mil cores tocando-a. então ela se dava conta de que ele era feito disso, ele era isso. a desordem das coisas, as mil cores, as mil vozes, as mil portas. e o aceitava, como quem aceita uma criança em seu ventre. _eu te aceito. te aceito. – as únicas palavras no meio daquela noite, ditas sem deixar escorrer um único som. agora ele estava dentro dela, correndo por suas veias, atravessando suas conexões nervosas e remexendo suas entranhas, pulsante, pulsante.
ela era a casa. a casa que ele desarrumava. deixando em cada pedaço de espaço, o pó viscoso de sua imensidão. e dentro dela ele se arrumava e reconstruía cada parte sua.
abandonava ali, a lama e a brusquidão, para se tornar suave, quase harmonioso outra vez.
ela ouvia então um grito quase mudo, que se esforçava para sair da garganta de alguma coisa, e como num parto, ela o expulsava de si, como num parto que faz nascer, brotar, jorrar,
ele nascia novamente, limpo, puro de todas as durezas, pecados e da loucura suja
– nem toda loucura é suja, assim como nem todo mal é ruim –
para sair pela porta e deixá-la novamente sentada no sofá, as mãos se torcendo e os olhos espiando as luzes da rua. ele havia partido, estava sozinha. ela e casa, que já não era mais ela. as cores apagadas e o silêncio. a casa que ela tinha que arrumar. pois sabia que ele viria novamente no outro dia.
by anne. 19/02/08 3:40 pm.